Ao sopro do fungo — Parte 3

Jonas Tex
6 min readNov 27, 2020
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— Tá vamos lá. Em algum momento, a vacina vai chegar, certo?

Na sexta-feira, eu e Nael conversamos sobre a distribuição da vacina. Eu o tinha escutado dizer ao telefone para pessoas do seu trabalho que logo mais, compraria sua vacina num laboratório. Ele deixou bem claro que não planejava cometer nenhuma ilegalidade, apenas correria para o posto se estivesse à venda. Aquilo me parecia muito apressado, sem considerar todo o processo de distribuição. Argumentei que provavelmente seríamos os últimos a tomar, comparando nossa posição com os grupos de risco. Demoraria um bom tempo para haver essa disponibilidade que ele tinha dito ao telefone, e se o governo liberasse para a venda antes disso, na minha visão, seria um absurdo. Longe de qualquer sobriedade, retomamos essa conversa no sábado:

— Certo, mas é o que eu te falei ontem. Muito provavelmente seríamos os últimos a tomar.

— Sim, então. Eu concordo que deveria ter todo esse processo, mas não tenho certeza se as coisas vão funcionar assim. Se tiver, ótimo. Mas eu vou tomar a primeira vacina que estiver disponível, independente de como foi feita a distribuição.

— Mas isso privilegiaria quem tem dinheiro, e não quem tem mais risco de vida.

— Bom, isso é uma falha do o estado. Não deveria ter permitido. Eu estou pensando na minha saúde. Você não tomaria? Isso até ajudaria na imunidade geral.

— Não sei…nesses termos que estamos colocando, acho que não. É bem provável que estejamos falando merda sobre esse processo todo. O melhor seria mandar uma DM para o Átila.

Levantei e fui correndo para o banheiro. Eu logo lembrei que a terapeuta tinha me dito, sobre a eliminação dos efeitos da droga ao longo do dia. Bem que me disseram que a mijada de cogumelo é mágica.

— Cara …você sabe que o ser humano é naturalmente egoísta.

— Isso já é ideologia sua — voltei a me sentar no quarto branco.

— Como assim? Isso é ciência, o homem é individualista, vai sempre pensar em si.

— Queria estar mais sóbrio para formular meu pensamento. Não é justo você discutir com um drogado — a paranoia já tinha diminuído consideravelmente, mas eu me percebia muito mais lento no raciocínio do que o Nael. Demorava para responder, fazia algumas pausas, enxugava os olhos (mas não muito).

— Você não pode dizer que é ciência, não há uma resposta absoluta sobre isso e nunca terá— respondi

— Alguém na idade média jamais acreditaria em foguetes, satélites e smartphones.

Eu sabia que aquilo era falacioso, mas não conseguia formular uma resposta rápida. Então levantei — Não cara…

— Sim!

— Você pode até pensar assim, mas não ache que não é ideologia. Isso é a base do que divide direita e esquerda, se o homem é naturalmente bom ou mau. Se é individualista ou coletivista. Não trate como óbvio e exato.

— Na minha opinião é óbvio.

— É óbvio sim. Você está tão conectado na sua ideologia, tão imerso no status quo, que você enxerga o egoísmo como um comportamento natural.

Notei na hora que tinha passado do tom. Nael também. De forma agressiva, queria romper com um amigo que estava defendendo a vida na Matrix até a morte. Valendo-se da filosofia, meu primo tentou amenizar:

— Não sei se foi Platão ou Aristóteles, mas algum filósofo desse tempo enumerou cinco sentidos que eram responsáveis por toda codificação sensorial. Sua conclusão era de que os cinco sentidos de uma pessoa nunca será o mesmo para a outra. A forma como eu vejo o egoísmo é diferente da sua, o resultado dos nossos sentidos, ao longo fa vida, foram diferentes para cada um.

Fodeu. Eu vi esses 5 sentidos saírem da mão dele. Um de cada cor. Algumas dessas cores eu nunca tinha visto na vida. Coloquei as mãos nos olhos. Travei. Lentamente, levantei e andei em círculos, pedindo para ele esperar que eu ia responder, mas precisava pensar. Visão, audição, tato, olfato e paladar.

— Fui bem agressivo, foi mal. A gente perde um pouco o auto-controle nesse estado.

— Relaxa, está tudo bem.

Sede. Depois de dar seis voltas e meia, caminhei até a geladeira para pegar água. Como estávamos dividindo a casa com duas meninas, não tinha certeza qual era a nossa garrafa de água. Ainda estava pensando numa resposta adequada depois do nó de Aristóteles.

— As meninas não vão se importar se eu tomar um copo de água né? Depois a gente repõe.

— A não sei, acho melhor esperar elas voltarem.

— Mas eu estou com sede!

Quem é o individualista!? — Nael gesticulou com as mãos como se estivesse se defendendo de um exame de abelhas.

— Eu preciso dessa água primo — caindo na gargalhada.

— Mas retomando — tomei a um gole— essa questão é uma das grandes perguntas da humanidade. Quem somos nós? O que havia antes do Big Bang? Qual o sentido da vida? É uma questão filosófica, não há uma resposta objetiva e talvez nunca terá. Como se prova uma coisa dessas?

— Não sei. Mas ok, talvez seja isso mesmo — ele estava cansado de discutir.

— Você concorda que é uma questão filosófica?

— Tá, concordo.

— Então você concorda que é uma ideologia.

As meninas chegaram da praia. No quarto branco, eu ainda estava com certo medo de ser julgado, e conclui que essa era a hora de ligar para a Nanda. A segunda ancoragem.

Estava confiante de que seria a última ligação, e que o ocorrido de manhã não passava de um susto. Mas enquanto falava com ela, me perdia bastante em algumas palavras, parecia até que tinha desaprendido a expressar sentimentos e situações. Quase como uma criança.

Esse jeito infantil me acompanhou em micro-situações como lavar as mãos, pegar objetos e abrir envelopes. Até por isso, evitei falar muito com as meninas. Do telefone, Nanda sabia que eu não tinha voltado completamente e recomendou que eu ligasse novamente no fim do dia. Paciência — me frustei, mas repetia para mim mesmo — o pior já foi.

— Nael, a partir de agora podemos sair de casa, o que você quiser fazer eu vou junto. Não precisa mais cuidar de mim. Só não me convide para beber ou entrar num carro.

Voltamos para a praia. Dessa vez, bem mais aglomerada do que de manhã. Mal conseguia abrir o pacote de sorvete, e novamente, meu primo socou o enxame de abelhas pois não entendia qual era a dificuldade. O açúcar parecia ter saído de uma frigideira melada de coca-cola, eu mal consegui engolir a primeira mordida.

— Toma, fica com o sorvete. Prêmio de consolação por você ter perdido a discussão.

— Você é xarope.

Pela primeira vez, estava curtindo os efeitos da droga. Qualquer coisa era motivo de muita risada. No matinho, realizei a segunda mijada mágica, e pintei um dos quadros mais bonitos na minha cabeça. Só faltava a Sininho ter saído de alguma árvore.

Novamente o mar me chamava, mas dessa vez era um convite. Os passos dados correspondiam um pouco mais com a distância, enquanto que os pensamentos se articulavam em resoluções. Conflitos, pessoas, brigas, situações. Internamente, tudo era perdoado e entendido com empatia.

Ser o que somos é um dos maiores desafios que existem. Talvez seja por isso que as drogas existam. Experimentar viver o máximo do que somos, e ao mesmo tempo viver na pele o que escondemos. Um assustador limite da expectativa que temos sobre nós mesmos, e a prova das próprias fraudes e ilusões.

A experiência é o truque e a mágica ao mesmo tempo. As alucinações, a paranoia, os passos leves. Disfarces originais de nós mesmos. Manobras da mente para a mente. Talvez seja por isso que há terapias que trabalham em conjunto com alucinógenos, antidepressivos, antipsicóticos.

Sei que daqui há alguns dias o perdão e empatia generalizada iria terminar, assim como o quarto branco também foi vermelho pela manhã. Em breve, iria narrar a situação no Medium e criar um grupo no Whatsapp para falar só isso. Pode ser que até lá eu não daria tanta importância, e concluiria que foi só um fim de semana que fiquei doidão. E foi isso mesmo.

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